30 março 2009

Papai Noel da Silva

Andando na rua com suas chinelas e bengalas, Papai Noel da Silva, brasileiro natural de Curitiba, 72 anos. Pela Cruz Machado seguia seu caminho, num dia de verão típico da Bahia. Bermudão vermelho, jaqueta leve vermelha, meias listradas à la “Onde está o Wally” esticadas até o joelho, bengala na mão direita, guarda-chuva vermelho (usado como bengala) na mão esquerda. Meio magrinho, barbas de profeta do povo. Papai Noel europeu tem barba cheia e branquinha. A dele era rala, longa e fina como a do Saruman, o mago malvado do Senhor dos Anéis. Ou ele deu uma aparada para suportar o verão, ou é fã do filme.

Papai Noel de férias? Que nada. Aquele ali torrou todo o salário do Natal de 2008 em cachaça. Não estava bêbado, mas tinha cara de que bebia. Além do mais, andava com uma bengala de cada lado do corpo apesar de suas pernas parecerem bem sadias. Mas deu pena. Pensei, ele é tão bonzinho. Dá presente pra todo mundo. Bota um monte de sorrisos na cara. E tá ali, pobre e coitado. Vontade de começar um movimento, estilo “Adote um Papai Noel quando o Natal passar”.

O clima de Natal bateu na minha alma. Na cabeça, comecei a cantar “Jingle Bell”, e a balançava levemente de um lado ao outro. Sorriso na cara e felicidade típica de dezembro. Pensei em tirar uma foto dele para guardar aquela emoção. Mas fiquei estática. Ele andava em minha direção ou em direção às putas que deveriam estar drogadas e estiradas no chão dos h(m)otéis da Cruz Machado. Passou por mim e disse: “Tudo bem, criança?”.

26 março 2009

Fumar é bom e eu gosto

- Boa tarde, senhorita.
- Boa tarde, doutor.
- Diga-me: o que você tem?
- Falta de ar, de fôlego. Moro no oitavo andar sem elevador. Não é fácil!
- Você está gripada? Mais algum outro sintoma?
- Eu fumo. Mas não quero parar de fumar.
- Mas é por isso que você tem falta de ar.
- Eu sei, mas eu amo fumar.
- Por quê?
- Não sei, é muito bom! Quando eu acendo o cigarro, o fogo que começa a queimar me dá uma inspiração inexplicável! Uma luz que brilha, um novo começo, calma. Quando eu puxo o ar, é como se ganhasse um novo fôlego. A fumaça que está dentro de mim, tenho a impressão que limpa tudo. Quando eu expiro, sinto que tudo de ruim sai junto com a fumaça. Um alívio.
- Mas você está consciente de todos os problemas que o cigarro causa?
- Sim, mas o cigarro não me faz mal. Me faz bem! Sabe, doutor, minha família não mora aqui, não tenho filhos, não tenho marido nem namorado, mas tenho o meu cigarro.
- Você tem sérios problemas.
- Não tenho nenhum.
- Mas… você não tem ninguém de próximo?
- Escuta, os problemas são os filhos, os caras. Eu não tenho nenhum problema.
- Você precisa parar de fumar, senão não vai voltar a ter fôlego.
- Fumar é bom e eu gosto. Você não pode só me prescrever um remédio pra fôlego?
- Não existe. Você precisa tentar parar!
- Eu já tentei. Uma vez… fiquei 3 horas sem fumar. Foi bem dificil! Outra vez, que foi o máximo que eu consegui, foi durante uma semana.
- Isso já é bom! Bem, você tem um vício. O cigarro te dá força emocionalmente.
- Nao é isso. Sou viciada pela nicotina mesmo.
- Mas faz mal. Bem, você já tentou os chicletes de nicotina?
- Não. Mas não é só isso, eu preciso ver a fumaça que sai de dentro de mim e leva embora os meus problemas.
- Ah! Então, você tem problemas?
- Não tenho! Porque eu fumo.
- Sei, sei.
- Ah, não existe um tipo de cigarro sem nicotina?
- Não que eu saiba.
- Caralho! A gente poderia inventar isso. Abrir um novo negócio. Ganhar uma grana! O que você acha?
- … . Então, vamos tentar o método do chicletes, senhorita. Você pode comprar nessas farmácias aqui.
- Dá pra esperar um pouco pra começar o tratamento?
- Hummm… dá! Você quer começar quando?
- No inverno.
- Por quê?
- Porque daí tá frio. Eu posso respirar fundo quando tô mascando o chicletes. E, depois, quando eu expirar, vou ver a fumacinha saindo. Pode ser que funcione…

18 março 2009

Formiga Mór

Coloquei o pé direito no meio de uma trilha de formigas. Não me picaram. Mas três delas me levaram embora, junto com um pedaço de folha de bananeira e umas migalhas de pão de centeio. Fui parar no formigueiro. A Formiga Mór pediu para falar comigo e eu fui lá, na sala de reuniões para assuntos extraterrestres. Ela perguntou o que eu queria ali e eu disse que nada. “Só estava esperando o ônibus passar e coloquei o pé no lugar errado. Me desculpe.”. “O problema não é meu, agora você vai virar comida.”, disse a má Formiga Mór. Esmaguei ela com minhas havaianas pretas slim e voltei para o ponto de ônibus.

12 março 2009

Maçã

Era uma vez uma maçã que sentia dor. Ela tinha sinusite.

09 março 2009

Carne de boi

E o açougueiro cortou um bife do boi que morava no alto da montanha. Dona Lurdes comprou o mignon do boi para fazer um jantar especial a seus dois netinhos que se formaram no final do ano passado. Os netos já tinham 22 anos, e eram primos, não irmãos. Eles estavam terminando os estudos de psicologia. A coordenadora do curso deles tinha acabado de se aposentar depois de 30 anos de carreira. Ela reclamava que o marido não lhe dava atenção, e examinava meticulosamente cada ação e palavra do pobre coitado. Otávio era vegetariano, e sofria nas mãos de sua esposa que adorava cozinhar bife e frango. Passou anos comendo só salada. Ao menos, sua esposa comprava salada orgânica. Motivo pelo qual ele ainda era vivo e sua irmã, que era 5 anos mais nova, já estava lá no céu. Olívia só comia carne gorda, três vezes por dia. Odiava mignon. Deixava para as senhoras que queriam criar bois no alto de montanhas.

03 março 2009

A tinta que escorre

A tinta gosta de sujar. Suja vestido branco, suja mão, suja mindinho que arrasta na folha na hora de escrever. Suja pincel, suja camisa. Desbota e escorre.

Pinta muro. Pinta parede. Pinta casa. Quarto de menino vira de menina. Sala de estar vira de mal-estar. A parede branquinha vira roxa com estampa de zebrinhas e a menina certinha que morava lá precisa trocar de endereço.

Pinta clima. Pinta almas. O céu azul pintou um sorriso, um milhão deles. A noite toda escura é sombria. A luz branca das estrelas dá aquela esperança no fundo dos olhos. O verde da plantinha enche o pulmão. Vontade de viver. O azul do mar relaxa. O bege da praia relaxa. O amarelo esbranquiçado do sol relaxa e cega.

Mancha a vista. Mancha a pele. A tinta manchou a batata da perna do cara e nunca mais saiu. Ficou lá para sempre. Fez marca Indiana, fez dez estrelas, fez cara de índio inca, fez o rosto da filha. E da batata da perna do cara, foi manchando por aí. Todas as partes do corpo de todos os corpos embaixo do sol de sorrisos. Fez código de barras, golfinho, Betty Boop e aquele trecho do Raul. Fez o mapa do mundo, uma formiga, uma pulga.

E pintou palavras, em todas as línguas. Palavras diferentes, sempre diferentes. Uma palavra igual, mas diferente, porque a pele não é a mesma. Escreveu Amour e mudou tudo. A cor do sol, o clima do vermelho, a cor a parede que precisa mudar. Soprou a palavra ao ar e parou de escorrer.